Ontem tive a oportunidade de ter uma tarde maravilhosa, que por um momento teve a presença de uma pessoa sublime, um ser iluminado e poético chamado Fernando Anitelli, o vocalista da maravilhosa banda O Teatro Mágico. Vou me ater apenas a dizer isso, o restante ele fala por si só. Confiram essa incrível entrevista que nós fizemos com ele. Apenas para lembrar: BCC somos nós e FA é o Fernando.
Acompanhem, curtam, enriqueçam, somem, deliciem-se com essa entrevista!
(BCC) O que te
levou a criar a ideia de agregar elementos dos circos em sua arte e montar essa
trupe encantadora e poética?
(FA): Bom, tudo começou porque eu frequentava muitos saraus.
O sarau é justamente aquele espaço criativo e colaborativo, as pessoas
compartilham ideias e vivências. Era um momento onde eu estava sempre pulando
de um sarau para o outro, vendo essas coisas, conhecendo músicos, compositores,
poetas, aquilo tudo me encantava. Porque em todo sarau era comumente, no final
do sarau acontecia uma catarse coletiva, assim, sempre todo mundo declamava uma
poesia juntos, cantava umas coisas juntos, a sensação era sempre muito
amadurecedora. E eu sempre percebi que tudo dialogava a música, o teatro, a
brincadeira, o silêncio, então por que não levar aquele espírito pra cima do
palco? Aquele espírito plural. A ideia foi essa, montar um projeto que fosse
plural na sua estética, nas batidas, nas composições, nos arranjos, nas
temáticas, no figurino, em tudo! Porque na verdade, tudo dialoga. O circo tem
teatro, que tem graça, que tem poesia, que tem música. E na música tem poesia,
né? Então, simplesmente, se a gente parar pra pensar, é a coisa mais simples do
mundo a integração de tudo que se dialoga, é não sem preocupar com o rótulo,
com um estilo único, é você poder experimentar! E essa pluralidade se tornou
uma marca do OTM, uma bandeira, um ícone, pra ler a nossa maneira de fazer tudo
de forma independente, e a gente também compreendeu que fazendo o trabalho de
uma maneira colaborativa, com participação de várias pessoas convidando,
agregando pessoas, reciclando esse projeto em cada álbum, novos músicos, novos
atores. Um projeto que cada vez mais mostra que sempre fazia sentindo. Então
foi com esse espírito que começou, foi assim que surgiu a ideia de montar O
Teatro Mágico, essa proposta de trabalhar a pluralidade artística.
(BCC) Vocês fazem
música sem apoio de gravadora midiática. Em algum momento esse trabalho
independente dificultou as coisas ou apenas o talento é suficiente para
garantir a subsistência da trupe?
(FA): Bom, pra garantir a subsistência da trupe, a gente
precisa não só de talento, não só de disposição, de técnica, de estudo, de
ensaio, de treino, mas também de uma administração, um convenção, um
escritório, pessoas nos bastidores trabalhando constantemente com a empolgação,
com a comunicação, com a carreira. Com o direcionamento. Então, é uma equipe
muito grande! Essa equipe tem como a cabeça, o Gustavo Anitelli, que é
justamente o meu irmão. Ele é um sociólogo, uma figura fantástica! É o meu
irmão caçula que pra mim, é meu irmão mais velho, ele que cuida dessa coisa
toda. Meu pai é responsável por cuidar da lojinha, a minha mãe dá uma geral nas
compras, eu sou responsável hoje, junto com o Daniel Santiago, pela criação
artística e sonora, do OTM. A Andréa, junto com as nossas outras companheiras
cuidam da parte de performance, da criação, das danças aéreas, das cenas e das coreografias. Então, é dessa maneira
que O Teatro Mágico trabalha. A gente compreendeu que a Internet é uma
ferramenta fabulosa para qualquer artista que queira se colocar de uma maneira
próxima, junto ao público. Isso é muito importante para que essa geração
compreenda que a gravadora cumpre um formato dentro de um plano, para quem está
dentro de uma gravadora, as vezes é interessante, as vezes não. E a gente
justamente por tomar muito chá de cadeira de gravadora, e também já cair no
“conto do vigário”, a gente foi compreendendo que fazer as coisas de uma
maneira independente era o caminho. A Internet sempre colaborou pra isso porque
coloca você diretamente junto do seu público. “Ah, mas é só colocar música na
rede?” Não! Tem que colocar música na rede tem que ter um trabalho bom, tem que
ter um trabalho com personalidade. A música tem que ser boa, o show tem que ser
bom. O diálogo com cada uma das pessoas que curtem o seu trabalho tem que ser
interessante, criativo, produtivo.
Tem que ter coisa nova constantemente, a gente vive num
universo de informações muito rápidas! Então, é com esse espírito de saber as dificuldades
que a gente vai enfrentar, elas traduzem também esse caminho que a gente está
seguindo. Se a gente estivesse em outro caminho, a gente teria outras
dificuldades. Eu conheço outras pessoas que estão com gravadoras, pessoas que
já fazem parte de outro plano de música e têm as suas dificuldades alí também,
dentro daqueles universos. A gente foi desbravando um mundo, o que a gente
estava fazendo, ninguém tinha passado por alí antes. Muitas pessoas estavam na
mesma direção, mas na maneira com a qual a gente fez, a gente foi abrindo um
caminho. E isso foi interessante. Têm dificuldades? Têm! E a gente sabe que
sempre terá. E são essas dificuldades que a gente também tem que olhar como
oportunidades para novas soluções e traduções da nossa própria obra.
(BCC) Vocês inspiram e encantam muita gente. O que
inspira e encanta O Teatro Mágico?
(FA): Olha, tem um monte de coisa que encanta a gente! Eu
tenho uma visão, eu cresci ouvindo música POP. Eu fui conhecendo muitos outros
trabalhos relacionados a outros universos de música e fui me encantando cada
vez mais, pesquisando e estudando. O gostoso de ouvir música também é isso, é
você entender a não ouvir somente a música, às vezes o timbre, o som, o groove,
a letra, você vai edificando cada coisa que você conhece. Acho até melhor nem
citar uma coisa ou outra porque eu provavelmente vou esquecer, mas é música
brasileira, é música de fora... Eu acho que tem dois tipos de música; a música
que simplesmente toca e a música que te toca. Eu gosto da música que nos toca,
sabe? A música que toca o coração, essa eu gosto. Bate no peito e dá o recado,
isso é inspirador! Não existe de uma coisa de “Quem é referência pra quem?”,
todos nós somos referência um para o outro. Em algum momento a gente faz uma
m*****, aí depois, “Olha lá oh, referência. Não faz isso daí não que isso não
rola!”, ou se a gente faz uma coisa boa, ”Puxa! Que referência boa”. Então,
tudo é referência. A convivência, a prática, você observar como as outras
pessoas trabalham, como elas falham e como elas resolvem. O que inspira e
encanta OTM são as soluções poéticas, críticas e humanas. Enfim, é isso.
(BCC) Anitelli, conte um pouquinho mais sobre
a origem das letras produzidas. Por exemplo, é nítido que são muito bem
elaboradas, com todas as metáforas e jogos de palavras. Arquitetar as canções é
o objetivo ou simplesmente flui?
(FA) Ah
não! O que simplesmente flui, às vezes é uma frase, uma ideia. Mas depois pra
fazer, pra construir a coisa... Jesus amado! É arquitetando mesmo. Assim, ““pensa em uma palavra”, “vê qual
verso não ficou legal”, “ vamos colocar outro, esse daqui não!”, “a sonoridade
não ficou boa”, “essa palavra aqui eu já falei no outro álbum”, “vamos no
dicionário”, “Que palavra interessante!”. É bem assim! “Emanemo-nos amor? Cara,
a gente coloca “metamorfoseada” dentro de uma letra! “A poesia metamorfoseada”.
Eu acho que a gente tem que arriscar nas
palavras, no som, no sentido. A gente tem que ser corajoso nesse ponto e isso
requerem tempo, pesquisa, escreve aqui e ali. Tem gente que faz letra na hora,
eu não consigo!
Eu
vou por pedacinhos, eu vou montando, eu sou um artesão da palavra, às vezes é
com martelo, faca, pra chegar ao resultado final. Então é bacana porque você
vai lendo e relendo muitas vezes você vai aprimorando. Uma vez eu ouvi um
comentário do Bob Dylan que disse assim: “O músico tem que fazer dez músicas
por semana pra ver se uma presta”. E com os textos, isso é muito real, é
justamente assim: Tenta. Tenta melhorar faz de novo. “Vamos tocar uma música”?,
“Vamos tocar mais rápido”?”, “ Vamos tocar mais alto? “Vamos tocar mais
baixo?”, “ Um pouco mais devagar.” , “ Muda o timbre.”, “ Agora coloca um veneno!”, “ Não, agora uma
intenção de amor!”.
Então, caminha pra vários locais. Eu acho
que o importante é você saber o que você quer aí você vai compondo o caminho
para você chegar até lá. Se você não sabe o que você quer dizer, aí a coisa
fica meio “quenquém”, aí acaba não tendo a força que poderia ter.
(BCC) Vocês concordam que em nossa
sociedade atual, tão conturbada e conflituosa, o momento de ouvir O Teatro
Mágico, é uma oportunidade para cada indivíduo parar e reparar nas coisas belas
e boas? É assim também quando se
entregam a uma nova composição?
(FA): Olha, eu busco no trabalho do OTM
fazer uma tradução da nossa contemporaneidade. Então, se você pega o primeiro
álbum, é diferente do segundo, e que sim, é diferente do terceiro, e que sim, é
diferente do quarto, que é diferente do quinto. A gente está no quinto álbum, e
pra mim ele é muito bom, “é de se pensar o que cabe nesse riso” “quem dera a
era fosse aquela em que éramos heróis” e tantas outras. “Mãos ao desolados”,
“querem tapar o sol com a peneira” “A justiça, da onde vai? Da onde vem?”.
Então, essas coisas são muito atuais, e ao mesmo tempo em que é atual também é
atemporal porque não são canções estatadas, mas são canções que refletem o
espírito da nossa atualidade. Mas você pode ouvir daqui a dez anos que você
entender, vai traduzir, vai sentir batendo no coração com uma determinada
atualidade também. É igual ao nosso primeiro álbum, tem gente que adora as
canções do primeiro álbum, tem gente que acha que o primeiro álbum é mais
legal, tem gente que acha que o segundo é mais legal. Tem gente que conheceu
agora e agora acha que é o melhor. Então isso é muito relativo, não existe uma
equação. O que eu acho interessante é justamente é essa questão de saber crescer, saber traduzir as coisas junto com o nosso público,
sem aquela pretensão de querer ficar se repetindo por achar que se o sucesso
valeu, tem que fazer tudo igual. Ou também tem aquela pretensão de “somos os
primeiros a fazer”. Eu acho que tem que ser com pé no chão e com
curiosidade. Acho que a curiosidade que
é bacana! Vamos ser curiosos, vamos experimentar isso.
(BCC) Por mais que a magia de vocês consiga arrebatar
corações, ainda são feitos de carne e ossos. A sobrecarga de corresponder às
expectativas, de cumprir tarefas, de se doar por inteiro a essa causa, alguma
vez fez vocês desanimarem?
(FA): O que desanima a gente é o “estar em trânsito”, é a
palavra “chek-in”. (Risos) A gente ama estar no palco, a gente ama tocar. É o
momento mais gostoso! Imagina você estar maquiado, com aquele personagem, com
aquela criatura que, antes, era um papel em branco e agora aquela criatura está
ali presente e existe. A música, quando está todo mundo cantando, é a coisa
mais linda! Agora... Estar em trânsito,
o vai e vem, às vezes cansa. A gente não tem muita escolha, a gente tem que
estar perto. O Brasil é um país gigante! Cara, tocar em Fortaleza e depois tocar
em Porto Alegre o mesmo set list... O Brasil é um país hiper continental, a
gente já tocou no Acre, no Amapá... A gente cantou em tudo quanto é lugar. É um
país gigante e agente tem ir a esses lugares, então o fato de a gente não estar
mais presente em rádios e televisões, a gente não tem a força que muitos outros
artistas têm. Existem artistas que a mídia já vem antecipando antes. E a gente
vai mesmo desbravando, um conhece, divulga para o outro. Então esse espírito
pede para que a gente seja sempre muito disposto, tenha muita força, e a gente
gosta disso, a gente está fazendo o nosso caminho. E cansar disso a gente cansa
naturalmente, assim como qualquer outra coisa que a gente faz. A gente fica
cansado, “puxa to cansado”, mas cansar do nosso trabalho e da nossa missão,
jamais.
(BCC) Qual a relação político-social das letras do
grupo?
(FA): Toda arte é política, então, ponto final. Toda relação
é política, tudo o que se trata de relações entre os seres humanos é política.
A política é justamente essa relação. Eu acho que a gente tem que compreender
de outra maneira, não é só sacanagem, “aquele bando de bandidos”, a política
está em nós. Ela está nas relações em como a gente fala, em como a gente
recebe, como a gente observa as coisas, como a gente deixa de olhar com paixão,
com coragem, com ousadia para as coisas do cotidiano. Eu acho que a gente tem
que debater, tem que relacionar. Isso é uma coisa fundamental, não pode “Ah! Eu
to indo na onda”, como massa de manobra, como boiada, como diria Zé Ramalho.
Então a nossa relação é essa, é sempre uma visão humanitária, uma visão contra
a violência, contra a homofobia, contra o racismo, em favor da mulher e seus
direitos, em relação ao homem e a máquina... De todas essas coisas! A gente
canta às vezes dores comuns e essas dores comuns são questões políticas, são
lutas de classe, são relações com o trabalho, com a educação, com a
acessibilidade, com a saúde. A gente canta essas coisas, eu acho importantes os
trabalhos. “Ah! Tem música que é só pra entretenimento”, sim, tem música pra
tudo quanto é coisa. Existe música que é só pra vender, tem música pra
relaxar... A música que OTM faz, é essa música ligada à política, às relações,
ao cotidiano e aos nossos sonhos. Quando a gente fala em sonho, a gente fala em
luta, a gente fala em alcançar coisas, quando a gente almeja coisas. Então, pra
tudo isso exige batalha, companheirismo, exige respeito e educação. Então, isso
não tem como ser apolítico, não tem como estar à mercê disso tudo. Essa é a
maneira com a qual a nossa arte se traduz pra mim de uma maneira política, é
com essa ótica.
(BCC) Recentemente estiveram num trio
elétrico com o Saulo Fernandes, como foi essa experiência? Vocês já planejam
algo novo?
(FA) Foi uma experiência fabulosa! O Saulo foi
um querido, ele ligou para a gente e falou que já conhecia o trabalho, eu até
perguntei “mas como é que você conheceu o trabalho?”, ele respondeu “todo mundo
que escreve aqui na Bahia fala de OTM, a poesia de vocês, como vocês fazem,
como vocês encaram as coisas. E queria trazer isso aqui para o carnaval, trazer
essa poesia, trazer esse trabalho que tem a ver com essa coisa de cultura, de
informação. Ao mesmo tempo que você brinca, dança e pula, você ta cantando umas
coisas que tem essa cara, essa identidade político artística. Foi a coisa mais
legal do mundo! A banda do Saulo é uma banda boa pra caramba, tirou nossas
músicas , aí foi eu, o Daniel na guitarra, o Ricardo Braga na percussão, o
André na performance... Uma passarela
que encheu toda a avenida, os camarotes, e o povo todo na rua, sem divisão, na
rua, na pipoca, a galera toda na frente do trio, 30 graus. Abriu uma roda no
meio da rua, e eu lá em cima cantando “A poesia prevalece” e todo mundo “Só
enquanto eu respirar”, a gente cantou “Querem tapar o sol com a peneira”, foi
maravilhoso! Foi uma experiência fantástica, a gente ficou feliz da vida! Sim,
a gente quer fazer coisa nova. A gente já está fazendo aí um trabalho novo, pra
álbum novo, pra turnê; a gente quer sim fazer parceria. Estamos nesse
movimento, e assim que a gente tiver coisa nova a gente vai colocar para o
público.
(BCC) Fernando, você poderia expressar o que move vocês? O que é capaz de fazê-los
contornar e derrubar obstáculos?
(FA) Eu acho que, como diriam os bons e velhos poetas, os
filósofos, é o amor. Ponto final. Como diria Mário Quintana, “Não importa do
quê fale o poeta, ele sempre estará falando de amor”. Como já diria o
revolucionário Che Guevara, “Todo revolucionário tem amor à causa”, como diria
Pedro Munhoz, “Eu quero aquele amor que faz revolução, não aquele amor barato e
efêmero. O amor no sentido de olhar para as pessoas com cuidado, aquele amor
com carinho, com esse senso de justiça, de igualdade, de liberdade, sabe? Então
é isso que nos move, é poder fazer um trabalho que trate disso, onde a gente
trabalha sobre isso. Declarar as coisas que nos incomodam, que incomoda a
sociedade, a comunidade. Se a gente consegue passar isso de uma maneira bonita
e interessante, poxa, bora fazer! Nossa missão é uma luta de muitas mãos, a
gente espera muita coisa.
(BCC) Nós desejamos à vocês toda luz para que possam continuar brilhando. E essa luz possa seguir só enquanto vocês respirarem. Um abraço da equipe do nosso blog.
(FA) Muito obrigado, de coração! Um beijo grande para a equipe toda, todo carinho. Em breve a gente se encontra!